#019
French Connection
Imagine-se o seguinte cenário em que na semana passada ao andarmos por Italia acabámos a nossa viagem na Ligúria, ali perto de San Remo para ir a banhos em Ventimiglia. Uns meros 30 minutos de carro metem-nos do outro lado dos Alpes Marítimos, em Roquebrune-Cap-Martin e estamos em França para hoje escolher comme d’hab 40 trechos dos descendentes de Bonaparte (ça roule messieur JJ Burnel).
É incrivel o volte face (expressão que por acaso até tem origem italiana) que a cultura francesa teve em Portugal. Quando eu era miúdo a lingua de Rimbaud e Verlaine era muito importante na nossa vida, hoje já se sabe: ça sonne come si tu parlais chinois toi. O que é pena. A maior parte das canções desta semana tem um jogo de cintura poético, como diria uma brasileira no Bois de Boulogne, de cortar “grama” na gramática…
Lá em casa havia por isso discos de Montand, Jaubert, Moustaki, entre muitos outros. Menciono estes 3 porque começo a suspeitar que havia uma espécie de encoberto “coleccionismo” de amantes da Piaf e nunca me havia apercebido disso. Mas, en revenant a nos moutons, acho que o que sempre mais me fascinou na música francesa foi sempre a forma como a lingua, normalmente um veículo de conteúdo e significado, ganhava uma forma abstracta de instrumento musical na cadencia das sílabas e na amplitude dos versos, num “R” chargé ou naquele “Esse” soufflé, de uma forma como não acontece na música de outros países, como que nos falando intimamente.
Das minhas escolhas a que talvez melhor represente este ponto de vista é La Chose com as palavras de Erik Chorfi na voz de Patachou, nome artístico de Henriette Ragon e um trocadilho gastronómico: pâte-à-choux, ou seja a massa das profiteroles. Canção censurada em 1959 com o carimbo “Radiodiffusion interdite par le Comité d’écoute” é interpretada por esta senhora parisiense do 12eme (o único arrondissement que está fora da espiral) e a quem críticos e público em uníssono rapidamente passaram a tratar pelo nome do seu palco, um resto-cabaret em Montmartre onde George Brassens teria algumas das suas primeiras canções testadas ao vivo.
Uma pequena mania de Patachou, a sua colecção de demi-cravates: com uma tesoura ela cortava as gravatas dos senhores que mostrassem alguma relutância em juntar-se às cantorias. Errol Flynn e Thomas Dewey fazem ambos parte da lista de vítimas do seu snip-snip.
Este La Chose acende o rastilho de uma sucessão de canções épicé com Fernandel a contar do seu encontro com Felicie, Rita Cadillac admitindo que tem medo de coucher toute seule, enquanto a masoquista da Mme Noël pede para o Johnny a tratar mal. Ouf, ils sont malins ces français lá.
Esta semana deixo de fora os Daft Punk, famoso projecto de Bangalter e Homem-Christo mas mesmo assim dedico-me bem cedo a todas as mise à jour da French Touch ainda antes de chegar ao miolo com Saint Paul, Art of Tones e Yelle mas não sem passar pelos Rinôçerôse e os Taxi Girl. Je mets de côté Aznavour e Ferré mas para poder incluir Aksak Maboul ou Claude Nougaro. Sem Air para meter Satie, sem Phoenix para que nesse lugar possa tocar a minha banda pop francesa por excelência, os L’Imperatrice com o recentíssimo Fou. Boris Vian tem uma entrada muito curta mas uma outra dele já ficou marcada para aparecer na M4we #024 Restos de Colecção II. E como Trenet já tem uma canção lá quase ao fim, a minha escolha em relação à Route National 7 recai na superior versão que os Les Tueurs De La Lune De Miel fizeram em 1981. Deixo de fora Lio mas incluo o seu Amoureux Solitaires pelos Nouvelle Vague, através dos quais conheci a bela Helena Noguera, irmã caçula de Lio e de quem escolhi Je t´aime Salaud do seu disco Née dans la Nature. As irmãs são de descendência portuguesa, a mais velha emigrada para a Bélgica em pequenina, a mais nova já lá nasceu e por isso ambas poderiam ter ficado de fora desta escolha.
É que decidi (assim num modo xenófobo que em modo rigolade até parece ser um franco-atributo) que só iriam aparecer gauleses. Hehe, Jacques Brel ou Dario Moreno por exemplo não podiam entrar. O clube do bolinha mas aplicado quand même aos nativos que gostam de baguettes. Mesmo aquele tipo de regra que un petit punk destrói em segundos que eu não gosto cá dessas coisas de separatismos.
Dito e feito: decidi começar e acabar esta M4we com Édith Giovanna Gassion que por volta dos vinte anos veria a sua alcunha tornar-se apelido, Piaf, pequena “pardalinha” cheia de emoção que acaba esta selecção com La Vie, L’amour. No entanto para começar escolhi a sua La Foule mas pela canadiana Martha Wainwright, uma das irmãs de Rufus. As regras são para quebrar e esta não durou nem um segundo.
A segunda escolha é Gainsbourg puro na voz frágil de Mireille Darc mas Serge tem direito a aparecer mais umas vezes. Compositor incansável, lá mais à frente deixo-vos o tema titular do seu derradeiro album de estúdio datado de 1987. A terceira escolha é também a faixa que dá o nome ao album Amour Sauvage dos Casino Music editado em 1979 pela ZE Records. Composto por Eric Weber e Gilles Riberolles este duo disco-synthpop fez na altura um disco fantástico e desapareceu por volta de 1981. Consigo, com os meus dotes de Arsène Lupin, dar com Eric Weber a editar em 1991 um cahoteux pour dire pas chétif CD de música de piano ambiental chamada Romantic Piano Stories. Sobre esta possibilidade de qualquer um de nós poder vir a fazer algo de muito mau após ter conseguido algo de extraordinário relembro umas palavras de Flaubert: “Le souvenir est l’esperance renversée. On regarde le fond du puits comme on a regardé le sommet de la tour”.
Dito isto o que vem a seguir é uma mera promenade avec des arrets pour casser des clopes.
Didier Makaga até que nem é complicado de obter mas a faixa Y’A Du Blues (Tant Pis, C’est La Vie) do projecto Marché Noir aparece aqui por causa das magníficas recompilações French Disco Boogie Sounds que Charles Maurice tem feito para a Favorite Recordings. Edição de autor datada de 1984 o 12” de Max Marolany e família teve na altura uma edição de 200 exemplares e não há um único à venda no Discogs.
E há também numa margem o filão cómico de Jean Yanne com o seu personagem Johnny “Rock” Feller, ou a Bardot e o Distel (tra)vestidos em hippies enquanto que do lado oposto deste rio dão à margem coisas como The Pirouetes ou Les Rita Mitsouko…
Foi num Verão quente de 84, em Aix-en-Provence, tinha lá ido tocar a um festival, partimos a loiça toda e fomos sair, boir un coup ou deux. Num clube absolutamente bourrée de gens e do qual não me lembro do nome, ouvi pela primeira vez Marcia Baila e a pista foi ao rubro. Produção de Conny Plank, fotos de Mondino, roupa de JPG e video de Philippe Gautier, chegou ao numero 2 do top de vendas francês. O prefixo Les foi adicionado um ano mais tarde para toda a gente perceber que era o nome do grupo composto por Catherine Ringer e Fred Chichin em vez de ser o nome da cantora. Até à morte de Chichin em Novembro de 2007 o grupo continuou a construir uma carreira exemplar e sempre bem acompanhados, Tony Visconti produziu o segundo e o terceiro album, colaboraram com os irmão Mael dos Sparks e com Iggy Pop, o filme Soigne Ta Droite realizado em 1987 por Godard tem imagens das gravações de The No Compreendo.
Deixo-vos esta semana com o tema La Jalousie, também do primeiro album, verdadeiro arrache-coeur nas palavras À ta merci tu voudrais avoir / Cette pute, cette femme, cette salope chérie
Merde! À la fin tu voudrais avoir / Cette femme que tu aimes pour toi seul.
Nota: a imagem desta semana é retirada do maravilhoso livro The Frenchman: A Photographic Interview with Fernandel onde Philippe Halsman faz perguntas a Fernandel e este responde a cada uma delas com uma grimace.
Je vous souhaite un fin de semaine plein d’ombre car dehors ça brûle.
#staysafe #musicfortheweekend
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Imagine a scenario in which, when strolling through Italy last week, we ended our trip in Liguria, there just near San Remo to go swimming in Ventimiglia. A mere 30-minute drive takes us across the Alpes Maritimes, to Roquebrune-Cap-Martin and we are in France to choose this week’s 40 morceaux of Bonaparte’s descendants (ça roule messieur JJ Burnel).
It is quite an incredible volte face (expression that happens to have an Italian origin) that French culture had in Portugal. When I was a kid the language of Rimbaud and Verlaine was very important in our life, today we already know: ça sonne come si tu parlais chinois toi. Which is a pity as most of this week’s songs play poetic waist movements as if in a belly dance for the soul.
Chez nous there were records by Montand, Jaubert, Moustaki, among many others. I mention these 3 because I begin to suspect that there was a kind of covert “collectionism” of Piaf lovers and I had never realized it. But, en revenant a nos moutons, I think that what always fascinated me the most in French music was always the way language, normally a vehicle of content and meaning, gained an abstract form, almost like a musical instrument in the cadence of syllables and in the amplitude of the verses, in an “R” chargé or an “Esse” soufflé, in a way that does not happen often in music from other countries, as if it was speaking to us intimately.
Of my choices, the one that perhaps best represents this point of view is La Chose with words by Erik Chorfi for the voice of Patachou, Henriette Ragon’s stage name and a gastronomic pun: pâte-à-choux, in other words, the dough that makes profiteroles. A song censored in 1959 with the stamp “Radiodiffusion interdite par le Committee d’écoute” is interpreted by this Parisian lady from the 12eme (the only arrondissement that is off the neighbourly spiral) and whom critics and the public in unison quickly came to refer to the name of her stage, a resto-cabaret in Montmartre where George Brassens would have some of his first songs tested live.
A small mania of Patachou: her collection of demi-cravates, with scissors she would cut the ties of any gentleman punter who showed any reluctance to join in the singing. Errol Flynn and Thomas Dewey are both on the snip-snip list of victims.
This La Chose ignites the fuse for a succession of spicy songs with Fernandel and his meeting with Felicie, Rita Cadillac admitting that she is afraid of coucher toute seule, while masochist Mme Noël asks Johnny to treat her badly. Ouf, ils sont malins ces français lá …
This week I leave out Daft Punk, famous project by Bangalter and Homem-Christo, but I still dedicate myself to all the French Touch mise à jour even before getting to the the core of this French Connection, selecting Saint Paul, Art of Tones and Yelle but not without going through Rinôçerôse and Taxi Girl. Je mets de côté Aznavour and Ferré as to be able to include Aksak Maboul and Claude Nougaro. No Air to get Satie in, no Phoenix so that I can play my par excellence French pop band, the L’Imperatrice with their very recent Fou. Boris Vian has a very short entry but another one has already been scheduled to appear on M4we # 024 Collection Surplus II. And as Trenet already has a song almost at the end, my choice in relation to Route National 7 falls on the superior version that Les Tueurs De La Lune De Miel made in 1981. I leave Lio out but include her Amoureux Solitaires by Nouvelle Vague , through whom I met the beautiful Helena Noguera, Lio’s youngest sister and from whom I chose Je t´aime Salaud from her album Née dans la Nature. The sisters are of Portuguese descent, the oldest emigrated to Belgium as a little girl, the youngest was already born there and so both could have been left out.
Because I decided (in a xenophobic way that in rigolade mode it seems to be a frank attribute) that only Gauls would appear. Hehe, Jacques Brel or Dario Moreno for example could not enter. The club of the ball but applied quandme to natives who like baguettes. Even that kind of rule that a petit punk destroys in seconds that I don’t like these things about separatism.
Said and done: I decided to start and finish this M4we with Édith Giovanna Gassion, who around the age of twenty would see her nickname become her epithet, Piaf, France’s emotional little “sparrow” that ends this selection with La Vie, L’amour. However, to start I chose La Foule but by the Canadian Martha Wainwright, one of Rufus’ sisters. Rules are to be broken and this one didn’t last a blink of an eyelid.
The second choice is pure Gainsbourg in Mireille Darc’s fragile voice but Serge has the right to appear a few more times. A tireless composer, later on I leave you the title theme of his last studio album dated 1987. The third choice is also the track that gives the name to the album Amour Sauvage by Casino Music, published in 1979 by ZE Records. Composed by Eric Weber and Gilles Riberolles, this disco-synthpop duo made a fantastic album at the time and disappeared around 1981. I could however, with my Arsène Lupine powers, track Eric Weber in 1991 putting out a cahoteux pour dire pas chétif CD of environmental piano music called Romantic Piano Stories. About this possibility that any one of us could do something very bad after having achieved something extraordinary, I recall these words by Flaubert: “Le souvenir est l’esperance renversée. On regarde le fond du puits comme on a regardé le sommet de la tour”.
That said, what comes next is a mere promenade avec des arrets pour casser des clopes.
Didier Makaga is not even complicated to obtain but the track Y’A Du Blues (Tant Pis, C’est La Vie) from the Marché Noir project appears here because of the magnificent French Disco Boogie Sounds compilations that Charles Maurice has been doing for Favorite Recordings. An author’s edition dated from 1984 the 12 ”of Max Marolany and family had a pressing of only 200 copies at the time and there is not a single one for sale on Discogs.
And there is also the comic streak of Jean Yanne with his character Johnny “Rock” Feller, or Bardot and Distel (cross)dressed as hippies, while on the opposite side of this river, things like The Pirouetes or Les Rita Mitsouko come ashore.
It was the hot summer of 84, I had gone to play a festival in Aix-en-Provence, after the concert we all went out, boir un coup or deux. In a club absolutely bourrée de gens and whose name I don’t remember, I heard Marcia Baila for the first time and the dance floor went ballistic. Production by Conny Plank, photos by Mondino, JPG clothes and video by Philippe Gautier, it reached number 2 of the French charts. The prefix Les was added a year later for everyone to realize that it was the name of the group composed of Catherine Ringer and Fred Chichin instead of being the name of the singer. Until Chichin’s death in November 2007 the group continued to build an exemplary career and always in good company, Tony Visconti produced the second and third album, they collaborated with the Mael brothers from Sparks and with Iggy Pop, the film Soigne Ta Droite made in 1987 by Godard has images from the recordings of The No Compreendo.
I leave you this week with La Jalousie, a theme also from their first album and a true arrache-coeur in the words: À ta merci tu voudrais avoir / Cette pute, cette femme, cette salope chérie
Merde! À la fin tu voudrais avoir / Cette femme que tu aimes pour toi seul.
Note: this week’s image is taken from the wonderful book The Frenchman: A Photographic Interview with Fernandel where Philippe Halsman asks Fernandel questions that are always answered with a grimace.
Je vous souhaite un fin de semaine plein d’ombre car dehors ça brûle.
#staysafe #musicfortheweekend
Martha Wainwright – La Foule
Mireille Darc – Hélicoptère
Casino Music – Amour Sauvage
Helena Noguera – Je t´aime salaud
Dimitri From Paris – La Vie
Cerrone – Hooked On You (The Reflex Revision)
Henri Salvador – Il fait dimanche
L’Impératrice – Fou
Marie et les Garcons – Re Bop
Aksak Maboul – Spleenétique
Didier Makaga – Minuit L’Heure Du Swing
Zizi Jeanmaire – Mon Truc En Plumes
Johnny “Rock” Feller Et Ses “Rock” Child – J’Aime Pas Le Rock
Les Rita Mitsouko – Jalousie
Boris Vian – J’Suis Snob
Mc Solaar – Caroline
Brigitte Bardot en duo avec Sacha Distel – La Bise aux Hippies
Les Tueurs De La Lune De Miel – Route Nationale 7
The Pirouettes – Jouer le Jeu
Maurice Larcange – Your Accordion
Saint Paul – The Tipsy Man (and his Jazzy Steps)
Art Of Tones – Rainbow Song (2018 Rework)
Taxi Girl – Cherchez le Garçon
Rinôçerôse – Le Triangle
Yelle – A cause des garcons (Tepr Remix)
Araxis – Thème d’Araxis
J.J. Burnell – Euroman
Claude Morgan – Le Sherif Qui Danse
Claude Nougaro – Le Cinema
Erik Satie par Katia et Marielle Labeque – 1ere Gymnopedie
Patachou – La Chose “Les ratés de la Bagatelle”
Fernandel – Félicie aussi
Rita Cadillac – J’ai Peur De Coucher Toute Seule
Marché Noir – Y’A Du Blues (Tant Pis, C’est La Vie)
Serge Gainsbourg – You’re Under Arrest
Magali Noël – Fais Moi Mal Johnny
Nouvelle Vague – Amoureux Solitaires
Marianne Crebassa & Fazil Say – 3 Mélodies de Verlaine, L. 81; I. La mer est plus belle que les cathédrales
Charles Trenet et son Quartette Ondioline feat. Jean-Jacques Perrey – L’âme des Poètes
Edith Piaf – La Vie, L’amour