#021

O carro Americano, um eléctrico chamado Desejo e outras histórias de percurso.

Esta semana apeteceu-me deixar o lado mais informativo que tem vindo a pautar as ultimas M4we, temáticas e por isso mais estanques e fazer uma mais em jeito freestyle só com música editada neste tão estranho ano de 2020 e subjugada a um tema mais exquisite… duas viagens por Lisboa, nos eléctricos 15 e 28. Down memory lane mas com música “do agora”, esse tempo existencial que me é cada vez mais estruturante e necessário.

Apesar de estar a passear de eléctrico, de pensar em acenar ao Hernani se passasse um pouco mais perto ao elevador da Bica (um funicular é um eléctrico obliquo) misturo aqui a sensação do primeiro mergulho no mar este ano com recordações distantes tingidas pela patine do tempo. Acaba por ser um passeio romântico, porque a memória tem dessas coisas, é composta mais por como nos lembramos dos eventos e menos por como as coisas verdadeiramente aconteceram.

Abro a meditar sobre o futuro com a voz de Angela Muñoz na faixa que encerra o brilhante album Introspection que o multi-instrumentalista Adrian Younge compôs para ela. Angela tem só 18 aninhos mas algo na voz dela atraiçoa a máscara que os dados na sua driver’s license impõem na secularidade da sua alma. Passo logo de seguida para os Bab L’ Bluz, uma banda franco-marroquina com um pé na música Gnawa e outro nos blues da Janis Joplin. A cantora Yousra Mansour não só quebra a tradição de que só homens podem participar na cerimónia como ainda toca guembri e awisha, ambos antepassados do banjo e instrumentos intrinsicamente ligados à música do Magreb.

Sim eu sei, que tudo são recordações… Até à vigésima escolha estamos no eléctrico 15. Ouve-se Mats Oberg a interpretar King Kong de Zappa e penso no meu amigo David Polido, fã numero uno do compositor e com quem apanhei durante anos esse mesmo eléctrico no Dafundo. Do segundo tomo da série Jazz is Dead que o acima citado Adrien Younge faz com Shaheed Muhammad e para os quais convidam sempre “o avô” Roy Ayers escolho Sunflowers e isso traz-me a memória de conhecer o Pedro Ferreira que jogava no Direito. Era o meu primeiro jogo e a sua estreia também. O 15 ainda chegava ao Estádio Nacional nessa altura e lá nos conhecemos, uma hora depois estávamos a jogar um contra o outro. Nunca o vejo hoje em dia mas sei que a amizade formada nesse dia ainda existe.

Em 1871 os direitos de um sistema de de transporte urbano colectivo foram propostos e obtidos pelo escritor Luciano Cordeiro e o seu irmão Francisco e “trespassados” a investidores brasileiros da empresa Companhia de Carris de Ferro que teve sede no Brasil até 1876. A primeira linha inaugurou-se em 1872 entre Santa Apolónia e Santos. Estes primeiros “eléctricos” de Lisboa eram puxados por bois. Chamavam-lhes de “americanos” e não tinham “picas”. Cinco anos depois uma primeira tentativa de substituição da tracção animal não iria correr muito bem para as baterias do sistema Julien e seria só já em 1900 com a instalação de cabos aéreos e a construção da “Geradora”, uma unidade termo-eléctrica a carvão que acabaria por vir a fornecer a energia necessária à operação da rede.

Mong Tong é um duo de psych rock electrónico composto pelos irmãos Hom Yu and Jiun Chi de Taipei e o som perfeito para, saído do largo da Princesa, chegar aos Jerónimos. O meu lado orientalista a vir ainda mais à tona com FEET de Hiroshi Yoshimura e entro na Junqueira, linha recta que passa pela original instalação do liceu Rainha Dona Amélia: Oh No You Did Not! dos Sparkle Division logo seguido de Thiago Nassif com Rijo Jórra Já do album Mente e eis que já passei o Edifício Pedro Álvares Cabral, sede da Fundação Oriente.

Funny Thing, extraído do ultimo de Thundercat vê-me chegar ao Corpo Santo. No fim dessa curta canção toco na campainha de PARAR e saio para apanhar em sentido inverso o 28, transporte que me levou muitas, mas mesmo muitas vezes até ao Largo das Portas do Sol.

Durante uns tempos Lisboa tinha transportes com engraçadíssimos nomes como Florindo ou Jacinto mas aos poucos a Carris foi “engolindo” toda a concorrência. Foi-se a casa Rippert, a Empresa de Viação Urbana a Vapor e a Nova Companhia dos Ascensores Mecânicos de Lisboa. Só se foi mesmo aguentando a Chora, empresa do senhor Eduardo Jorge, que supostamente nas reuniões de administração estava sempre “a chorar” a ausência de lucros.

A subida em direcção ao Chiado da minha juventude começa ao som de Curious Mind de Ray-D que aqui pega no tema Joyous que os Pleasure gravaram em 1977, um clássico disco-funk-jiga-me-essa-anca e arrasta hipnoticamente o tempo para metade. O ritmo exacto para saltitar por escolhas de safra particular: Mulatu Astake para descer em direcção ao Poço dos Negros, o curdo Philippos Sîpano e a princesa country Tami Neilson para começar a subir a Calçada da Estrela. É aí que realizo que uma subida tão comprida e íngreme pode perfeitamente servir de alegoria à longevidade de várias escolhas seguintes. Brian Auger, a minha única escolha de uma música que não é de agora (apesar de Introspection, de onde retirei Light My Fire cantado pela actriz Julie Driscoll ser uma fantástica compilação editada este ano); Sainte Amante de Brigitte Barbu, ou seja mais um aka com que Pepe Braddock nos vai despistando a sua existência neste plano existencial onde nos encontramos e, last but by no means the least, Delicado, quarta faixa de Seeing Through Sound (Pentimento Volume Two) e prova que John Hassell, agora com 83 anos, continua mesmo a fazer “música possível para um Quarto Mundo” da qual o famoso primeiro volume saiu em 1980, ou seja há 40 anos.     

A recta final leva-nos a passar a Basílica da Estrela para entrar em territórios de Campo de Ourique. É inevitável e invariavelmente uma “corrida” cheia de boas intenções. Assinando como Arca, o venezuelano Alejandra Ghersi gravou KiCk i entre Barcelona e Londres e prova com este album ser muito mais do que a “menina” dos olhos de Björk. Machote pode ser uma tuna alt queer mas retira o reggae ao Ton para manchar de púrpura um fim de tarde perto das Ramblas ou à esquina da Ferreira Borges com a Saraiva Carvalho. Incoming Call From Miami do EP Pools & Palms de Evans serve de segway para a loucura criativa de Kai Hugo, o produtor holandês que como Palmbomen II assinou um disco em 2015 onde todas as músicas tinham como titulo nomes de personagens secundários da série The X-Files. Mas houve uma, Cindy Savalas, que ganhou vida própria, ao ter direito a uma biografia ficcional sob a forma do disco Memories of Cindy em 2018. Pois Kai voltou este ano com este I’m Cindy, uma (e)vocação ao legado fantasmagórico de certas figuras misteriosas da nossa cultura pop (penso imediatamente na Laura Palmer). É um disco de uma plástica tão poderosa que o aproxima aos Boards of Canada no tempo de Music Has The Right To Children.

Igreja de Santo Contestável passa à minha direita, eu centro-me na fabulosa Céu, filha de Edgard Barbosa Poças e que consegue em Apká! superar o já estonteante Tropix gravado em 2016.

Mas o que deixo como escolha final é da autoria de Roland de Lassus, compositor franco-flamengo de musica renascentista e pura banda sonora para quem saiba que o derradeiro apeadeiro é nos Prazeres. Saio do veículo. Paro no passeio, fecho os olhos. Respiro fundo…

Tenham um fim de semana em que a electricidade não seja estática.

#staysafe #musicfortheweekend

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This week I felt like leaving the more informative side that has been guiding the latest M4we, thematic and therefore more tight in structure and decided to go more freestyle choosing only music published in this strange year of 2020 ending up subdued by a far more exquisite theme … two trips through Lisbon, on trams 15 and 28. Down memory lane but with music “from now”, this existential space in time that I feel increasingly structuring and necessary.

Despite strolling through Lisboa by tram, thinking about waving to Hernani if my excursion went a little closer to the Bica elevator (a funicular is an oblique tram) I mix here the feeling of a first splash in the sea this year with distant memories coloured by the patina of time. It ends up being a romantic visit, because the memory has these things, it is composed more by how we remember an event and less by how things really happened.

My open salvo is a meditation on the future voiced by Angela Muñoz on the track that closes the brilliant Introspection album composed for her by multi-instrumentalist Adrian Younge. Angela is only 18 years old but something in her voice betrays the mask that the information in her driver’s license imposes on the secularity of her soul. I then move on to Bab L ‘Bluz, a Franco-Moroccan band with one foot in Gnawa music and the other in Janis Joplin’s blues. The singer Yousra Mansour not only breaks the tradition that only men can participate in the ceremony but also plays guembri and awisha, both ancestors of the banjo and instruments intrinsically linked to Maghrebian music.

Et si tu n’existais pas / Dis-moi pourquoi j’existerais? Up to the 20th choice, we’re on tram 15. You can hear Mats Oberg playing Zappa’s King Kong and I think of my friend David Polido, number one fan of the composer and with whom I caught for years this tram near my mom’s home. From the second volume of the Jazz is Dead series that the aforementioned Adrien Younge does with Shaheed Muhammad and for whom “grandfather” Roy Ayers is always invited, I choose Sunflowers and that brings me the memory of meeting Pedro Ferreira who played rugby for the Direito team. It was to be my first game and his debut too. Tram 15 still had its last stop at our National Stadium at that time and we met there, an hour later we were playing against each other. I never see him today but I know that the friendship formed that day still exists.

In 1871 the rights of a collective urban transport system were proposed and obtained by the writer Luciano Cordeiro and his brother Francisco and handed to Brazilian investors of the Companhia de Carris de Ferro which had its headquarters in Brazil until 1876. The first line was inaugurated in 1872 between Santa Apolónia and Santos. These first Lisbon “trams” were pulled by oxen and were called “American cars”, God knows why. Five years later, a first attempt to replace animal traction would not work very well for the batteries in the Julien system and it would only be as early as 1900 with the installation of overhead cables and the construction of the “Generator”, a coal-fired thermoelectric unit that would eventually supply the energy necessary for this operation.

Mong Tong is an electronic psych rock duo composed by brothers Hom Yu and Jiun Chi from Taipei and the perfect sound to arrive in Jerónimos coming from Largo da Princesa. The more orientalist side of my nature come out with FEET by Hiroshi Yoshimura and I enter straight line of Junqueira,  that goes through the original installations of the Rainha Dona Amélia high school: Oh No You Did Not! from Sparkle Division soon followed by Thiago Nassif with Rijo Jórra Já from the album Mente and behold, I have already passed by the Pedro Álvares Cabral building, headquarters to the Fundação Oriente.

Funny Thing, taken from the last of Thundercat, sees me reaching Corpo Santo. At the end of this short song, I press the PARAR button and get out so to jump into tram 28, a yellow thing of beauty that took me many, but really many times to Largo das Portas do Sol.

For a while Lisbon had cars with funny names like Florindo or Jacinto but little by little Carris “swallowed” all the competition. Rippert, the Urban Steam Company and the New Company of the Mechanical Elevators of Lisbon all disappeared. Chora, a company owned by Mr. Eduardo Jorge, which supposedly at management meetings was always “crying” about the lack of profits, was only able to endure, but not for long.

The ascent towards the Chiado of my youth begins with the sound of Ray-D’s Curious Mind that takes the track Joyous, a classic disco-funk rump that Pleasure recorded in 1977 and hypnotically cuts the tempo in half. The exact rhythm to emphasise some particular choices: Mulatu Astake while descending towards Poço dos Negros, Kurdish Philippos Sîpano and country princess Tami Neilson as we start going up Calçada da Estrela. This is where I realize that such a long and steep climb can perfectly serve as an allegory for the longevity of several subsequent choices. Brian Auger, my only choice of a song that is not new (although Introspection, from where I took Light My Fire sung by actress Julie Driscoll is a fantastic compilation published this year); Sainte Amante by Brigitte Barbu, just another aka Pepe Braddock uses so to mess our perception of him in this existential plane where we find ourselves and, last but by no means the least, Delicado, fourth track of Seeing Through Sound (Pentimento Volume Two) that confirms John Hassell, now 83, as the maker of  possible music for a Fourth World” from which the famous first volume came out 40 years ago.

The final stretch takes us to Basilica da Estrela as we enter the territories of Campo de Ourique. It is inevitable and invariably a “run” full of good intentions. Signing as Arca, Venezuelan Alejandra Ghersi recorded KiCk i between Barcelona and London and proves with this album to be much more than Björk’s sweet thing. Machote may be an alt queer tune but removes the reggae from the Ton tinging purple the late afternoon near the Ramblas or at the corner of Ferreira Borges and Saraiva Carvalho. Incoming Call From Miami from the Pools & Palms EP by Evans serves as a segway to the creative madness of Kai Hugo, the Dutch producer who, as Palmbomen II, signed an album in 2015 where all the songs were named after secondary characters from the series The X- Files. But there was one, Cindy Savalas, which took on a life of her own, by being entitled to a fictional biography in the form of the Memories of Cindy album of 2018. Because Kai returned this year with this I’m Cindy, (e)vocation of the ghostly legacy of certain mysterious figures in our pop culture (I immediately think of Laura Palmer). It is a work with such a powerful plasticity bringing it closer to Boards of Canada circa Music Has The Right To Children.

Santo Contestável Church to my right, I focus on the fabulous Céu, daughter of Edgard Barbosa Poças and who succeeds with Apká! overcoming the already stunning Tropix recorded in 2016.

Roland de Lassus, Franco-Flemish composer of Renaissance music is my last choice and the perfect soundtrack for those who know that this is the ultimate stop, Prazeres. I get out of the tram. As I stand on the sidewalk I close my eyes. I breathe deep…

May your weekend be filled with non-static electricity

#staysafe #musicfortheweekend

Angela Muñoz & Adrian Younge – So Young

Bab L’ Bluz – Ila Mata

Greg Copeland – For Lou Reed

Khruangbin – So We Won’t Forget

Magick Brother & Mystic Sister – Echoes From The Clouds

Marshall Chapman – Don’t Be Cruel

Mats Oberg – King Kong

Night Glitter – Higher

Mong Tong – Mystery 秘神

Paul Weller – 4th Dimension

Hiroshi Yoshimura – FEET

Lido Pimienta – Te queria

Huerta – All Wild Things Are Shy

Floco Floco – On m’a dit… (Rester con reprise)

Bananagun – Taking the Present Day for Granted

Roy Ayers, Adrian Younge and Ali Shaheed Muhammad – Sunflowers

Sparkle Division – Oh No You Did Not!

Thiago Nassif – Rijo Jórra Já

ATA Records – Wigged Out

Thundercat – Funny Thing

Ray-D – Curious Mind

Mulatu Astatke & Black Jesus Experience – A Chance to Give

Warren Wolf – For the Love of You

Philippos Sîpano and The MPC Orchestra – Nechîrvano

Tami Neilson – Queenie, Queenie

Chromeo – Stay In Bed (And Do Nothing)

Von Pourquery – All the Love (Domenico Torti Remix)

Brian Auger and Julie Driscoll – Light My Fire

Brigitte Barbu – Sainte Amante

Pier Bucci – Ama feat. Armelle Pioline

Jon Hassell – Delicado

Mogwaa & Mr. Ho – Bail-E

Duende Libre – Fefo (Hamana)

The Boomtown Rats – Here’s a Postcard

Thievery Corporation – Lebanese Blonde (feat. Elin Melgarejo)

Arca – Machote

Evans – Incoming Call From Miami

Cindy – Voice Message

Céu – Ocitocina (Charged)

Daniel Reuss & Cappella Amsterdam – Selectissimæ cantiones Libera me Domine