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PANTONE 19-4052: I’ve Got the Blues
Talvez por causa destes dois compridos fins de semana com feriados e tolerâncias de ponto começo aqui uma dupla de M4we’s coloridas por sentimentos que ao longo dos tempos têm sido cantados pela música popular. E começo logo “a matar” com a cor azul, sinestesia da tristeza dos escravos levados de África para as grandes plantações de algodão do sul norte-americano, mais concretamente para os estados do Alabama, Georgia, Louisiana e Mississippi.
Se a origem é nitidamente nos “espirituais” de forte influência africana, worksongs em que o canto embalava as intermináveis jornadas de árduo trabalho, foi a “instrumentalização” desses lamentos com viola, mais tarde electrificada que criou os blues que ainda hoje ouvimos, na musicalidade da blue note, uma nota cantada ou tocada com um timbre ligeiramente mais baixo do que o da escala maior, o que faz com que tenha um som distintamente triste e melancólico.
O blues aparece definitivamente após o fim da guerra civil americana e apesar de se tentar encontrar pioneiros em WC Handy (o “pai” do blues), Charley Patton, Son House ou Leroy Carr, a verdade é que o estilo desenvolve-se por si, de forma orgânica e livre nos juke joints, locais de convivência associados à recente liberdade dos trabalhadores escravizados.
Se um nome devia começar esta M4we é o de Robert Johnson, que supostamente terá feito um pacto com Lucifer, no cruzamento de umas estradas na periferia de Clarksdale no Mississippi, para assim obter o seu quase sobrenatural talento. Compositor de umas dezenas de canções, algumas que se tornaram verdadeiros standards do estilo, invocando um invulgar lirismo na sua poesia musicalizada pelos seus dotes “guitarristícos” que definitivamente “não lembravam nem ao Diabo”, o seu melhor trabalho está reunido no album compilatório datado de 1961, King of the Delta Blues Singers que viria a influenciar os Rolling Stones e os Led Zeppelin e todo um gigante blues revival nessa década.
No entanto acabei por deixar Johnson para outra oportunidade (ou para a curiosidade de quem me lê todas as semanas) e comecei esta com um grande fã seu: The Legendary Tigerman e Do Come Home, nota de abertura do seu album True. Sigo logo para a muitas vezes copiada e poucas vezes igualada “rouxinol sulista” Trixie Smith passando pela beat poetry de Slim Gaillard & His Boogiereeners e indo ao clássico Born To Be Blue composto por Mel Tormé e Robert Wells e aqui interpretado por Chet Baker. É assim que se pode constatar as linhas umbilicais que o jazz e blues partilham, cânticos da alma, soul music da angústia e do sofrimento mas também da celebração de liberdade. E assim podemos prosseguir caminho sabendo que este scat propagou-se de forma a contaminar este mundo todo. Ao Japão de um jovem Haruomi Hosono com o seu Hong Kong Blues do disco Bon Voyage gravado para editora Crown em 1976, uns belos anos antes dos seus Yellow Magic Orquestra. Ou à Alemanha, de uma ex-punk Nina Hagen, aqui já virada para a espiritualidade religiosa cantando Sometimes I Ring Up Heaven escrito por Anthony Heilbut e originalmente interpretado por Marion Williams.
As 40 escolhas desta semana passam a correr, são duas horas e poucos minutos onde se pode ouvir um trompetista italiano, Cash numa prisão, blues “para um sapo”, do Honda ou da Albinia… e avança inexoravelmente até ao fim como um “bo que faz muito pouco didley”: a quatro músicas do fim Luther Dickinson Featuring the Rising Star Fife & Drum Band em homenagem a Blind Willie Johnson com Bye and Bye I’m Going to See the King. Logo de seguida uma recente segunda mistura para Friday Night Samurai com que o meu amigo Paulo Pedro Gonçalves nos presenteou ainda esta semana quando dos 39 anos da estreia dos Heróis do Mar ao vivo. Quase a chegar ao fim Get Out Of My Life, Woman, um jump blues que Joe Williams gravou em 1965. Apesar de ser conhecido como cantor de jazz Williams viu o seu disco Nothing but the Blues reconhecido com um Grammy em 1984.
Acabo com um instrumental, de outra grande figura do jazz e da soul mas que no seu primeiro disco não enganava ninguém sobre a sua preferencia no “pantone” escolhido para a sua música. Little Girl Blue é o titulo do album de estreia de Nina Simone. Tem um subtítulo elucidativo: Jazz as Played in an Exclusive Side Street Club. Será que queria dizer juke joint? Quando Simone o gravou para a Bethlehem Records em 1959 ainda sonhava em ser uma pianista clássica e vendeu à editora os direitos do disco por 3 mil dólares, o equivalente a 27 mil em dinheiro de hoje mas que lhe valeu estar isenta de ganhar mais de um milhão em royalties, já que em 1987 a canção My Baby just Cares for Me (que havia ficado de fora do alinhamento original) tornou-se o seu maior sucesso. Num disco onde já se antevê o seu apreço pelos standards de Ellington, Rodgers & Hart, Donaldson, Basie e Gershwin a faixa que escolho para encerrar esta selecção é no entanto da sua autoria, Central Park Blues, escrita numa assentada e gravada num só take porque a editora precisava de mais um tema para finalizar o disco e para o qual Nina Simone acabou por se inspirar na sessão fotográfica promocional em que tinha estado na manhã desse mesmo dia em Central Park.
Despeço-me deixando aqui um bocadinho de Mário de Sá-Carneiro que talvez ajude na compreensão disto tudo:
Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse àquem…
#staysafe #musicfortheweekend
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Perhaps because of these two long weekends with bank holidays and flexible days off I prepared a pair of M4we’s coloured by feelings that throughout the ages have been sung in popular music. With no time to lose I start with the colour blue, synesthesia of all the sadness of them slaves taken from Africa to the large cotton plantations of the North American South, more specifically to the states of Alabama, Georgia, Louisiana and Mississippi.
If the origin is clearly in the strong African influence of the gospel spirituals, worksongs in which singing set the pace of an “endless” day of hard labour, it was the “instrumentalization” of these laments with viola, later electrified, that created the blues that we still hear today, with a blue note musicality, a note sung or played with a slightly lower timbre than that of the major scale, which makes it have a distinctly sad and melancholic sound.
The blues appear definitely after the end of the American civil war and despite trying to find pioneers in WC Handy (the “father” of the blues), Charley Patton, Son House or Leroy Carr, the truth is that the style developed by itself, organically and freely in juke joints, places of coexistence associated with the recent freedom of the formerly enslaved workers.
If someone should kickstart this M4we is Robert Johnson, who supposedly made a pact with old bro Lucifer, at the intersection of some roads on the outskirts of Clarksdale, Mississippi, to obtain his almost supernatural talent. Composer of two dozens songs, some that have become true standards of the style, invoking an unusual lyricism in his musical poetry due to his guitarist skills that definitely “didn’t let the Devil bat an eyelid”, his best work is gathered in a compilation dated from 1961, King of the Delta Blues Singers that would influence among many more the Rolling Stones and Led Zeppelin and the whole blues revival of that decade.
However I ended up leaving Johnson for another opportunity (or for the curiosity of those who read me weekly) and started this one with a big fan of his: The Legendary Tigerman and Do Come Home, opening note of his album True. I then move on to the often copied and rarely equaled “southern nightingale” Trixie Smith, going through the beat poetry of Slim Gaillard & His Boogiereeners and arriving at the classic Born To Be Blue, composed by Mel Tormé and Robert Wells and here sung by Chet Baker. This is how you can see and feel the umbilical lines that jazz and blues share, songs of the soul, soul music of anguish and suffering but also made to celebrate freedom. And so we can continue on our way knowing that this scat has spread well in order to contaminate this whole world. In Japan a young Haruomi Hosono with his Hong Kong Blues from Bon Voyage, recorded for Crown in 1976, a few years before creating his Yellow Magic Orchestra. Or in Germany, an ex-punk Nina Hagen, here already turned to religious spirituality singing Sometimes I Ring Up Heaven written by Anthony Heilbut and originally sung by Marion Williams.
This week’s 40 songs go on, it’s two hours and a few minutes where you can hear an Italian trumpeter, Cash in a prison, blues “for a frog”, by Honda or for Albinia… moving inexorably to the end like a “bo who does very little didley ”: four songs from the end Luther Dickinson Featuring the Rising Star Fife & Drum Band in honor of Blind Willie Johnson with Bye and Bye I’m Going to See the King. Right after that a recent second mix for Friday Night Samurai with which my friend Paulo Pedro Gonçalves gifted us this week for the 39th anniversary of the live debut of Heróis do Mar. Almost at the end Get Out Of My Life, Woman, a jump blues that Joe Williams recorded in 1965. Despite being known as jazz singer Williams saw his album Nothing but the Blues recognized with a Grammy in 1984.
I end up with an instrumental, from another great jazz and soul figure but who in her first album did not deceive anyone about her preferences in the “pantone” chosen for her music. Little Girl Blue is the title of Nina Simone’s debut album. It has an illustrative subtitle: Jazz as Played in an Exclusive Side Street Club. Did she mean juke joint? When Simone recorded it for Bethlehem Records in 1959, she still dreamed of being a classical pianist and sold the rights to the record for a flat figure of $ 3k, the equivalent of 27,000 dollars in today’s money, but that meant she was exempt from earning more than one million in royalties, since in 1987 the song My Baby just Cares for Me (which had been left out of the original alignment) became her biggest hit. On a record where you already feel the appreciation for the standards of Ellington, Rodgers & Hart, Donaldson, Basie and Gershwin, the track I choose to end this selection is, however, her own original composition, Central Park Blues, written in one set and recorded in one take because the label needed one more theme to finish the album and for which Nina Simone ended up taking inspiration from the promotional photo shoot she had been in the morning of that same day in Central Park.
I say goodbye by leaving here a taste of Mário de Sá-Carneiro that may help us understand all this:
A little more sunshine – I was hot,
A little more blue – I was beyond.
To achieve, I lacked that stroke of wing…
If only I fell short…
#staysafe #musicfortheweekend
The Legendary Tigerman – Do Come Home
Trixie Smith – He May Be Your Man (But He Comes To See Me Sometimes)
Slim Gaillard & His Boogiereeners – Travelin’ Blues
Chet Baker – Born To Be Blue
Scatman Crothers – Dead Man’s Blues
Ma Rainey – Black Eye Blues
Haruomi Hosono – Hong Kong Blues
Titus Turner – Hungry Man
Johnny Guitar Watson – I Want to Ta-Ta You Baby
Nina Hagen – Sometimes I Ring Up Heaven
Johnny Cash – Folsom Prison Blues
Harmonica Blues King Harris – Blues King Mango
Tom Waits – Step Right Up
Massimo Vanoni – Blues On A Groove
Cactus Pryor & His Pricklypears – (In Again, Out Again) Packing Up My Barracks Bag Blues
Screamin’ Jay Hawkins – I Put A Spell On You
Hattie McDaniels and Dentist Jackson – Dentist Chair Blues Part I
Andy Bey – Celestial Blues (Experience And Judgment)
Stevie Wonder – I Pity The Fool (by D. Malone)
Big Walter – Crazy Dream
Sonny Til & The Orioles – Hey! Little Woman
Blues By Five – Boom Boom
Boz Scaggs – Those Lies
O Martim – Honda Blues
G. Love & Special Sauce – Blues Music
Albinia Jones With The Don Byas Swing Seven – Albinia’s Blues
Albert King – Blues Power
Boogie Patrol – Hard to Tell You
Muddy Waters – Hoochie Coochie Man
Claus Ogerman Orchestra – Green Onions
The Cals – Another plan for school mix up
John Lee Hooker – Born In Mississippi, Raised Up In Tennessee
Wynder K. Frog – Blues for a Frog (Stereo Version)
Frank Frost – My Back Scratcher
Sheb Wooley – Hoot Owl Boogie
Tabby Thomas – C. C. Rider
Luther Dickinson feat. the Rising Star Fife & Drum Band – Bye and Bye I’m Going to See the King
Scarecrow Paulo – Friday Night Samurai (mix 2)
Joe Williams – Get Out Of My Life, Woman
Nina Simone – Central Park Blues