#039

Herzmusik für freie Seelen

Amanheciam os anos 70, algures em 72 ou 73, contava eu aí uns nove ou dez anitos e resolvi cravar a minha mãe para me inscrever no Cambridge School em Benfica no curso de alemão. Pouco tempo lá fiquei porque rapidamente percebi que tinha demasiado nas mãos e nicht genug Zeit, decidindo por isso deixar cair a mais recentemente ventura. Desde então vivo no arrependimento dessa decisão.

Nesses tempos se havia coisa que musicalmente me fascinava eram as obras para cravo escritas por Johann Sebastian Bach e que nos discos que existiam lá em casa eram interpretadas, que eu me lembre, por Zuzana Růžičková ou por Karl Richter. Era algo de celeste para um miúdo que ainda não conhecia nem a harpa nem o Harpo Marx.

Um pouco antes da revolução de 1974 a minha mãe mudou-se, os discos ficaram para trás (assim como os meus super-heróis da Ebal, a casa era mais pequena) e com a entrega das colónias muitos portugueses “retornaram” a Portugal. Alguma linhagem goesa que havia vivido na cidade da Beira em Moçambique vivia em Lisboa e um dos meus primos dava-me explicações de Matemática. E mostrava-me o progrock alemão que ainda não estava em voga a não ser para uma pequena elite tuga. Intitulado de Kraut era música emotiva mas cerebral que deslumbrava pelo preciosismo e o inusitado. Sowiesoso dos Cluster, Flammende Herzen de Michael Rother (que com Klaus Dinger tinha fabricado os Neu!), Letzte Tage – Letzte Nächte dos Popol Vuh, große Wunder dediscos que me marcaram imenso a adolescência mesmo sem contexto que suportasse tamanha admiração. Até ouvir Radio-Aktivität dos Kraftwerk, obra prima da electrónica e que fez para mim uma “ponte” com Bach. 

Ich, Ich glaub’ das zu träumen
Die Mauer, im Rücken war kalt
Schüsse reissen die luft
Doch wir küssen, als ob nichts geschieht
Und die Scham fiel auf ihre Seite
Oh, wir können sie schlagen, für alle Zeiten

Dann sind wir Helden, nur diesen Tag

Em 1976 Bowie mudou-se para Berlin, onde até 1979 fez a mais perfeita trifecta do art rock com Low, Heroes e Lodger. Contando com a ajuda de Brian Eno que já andava metido com Dieter Moebius e Hans-Joachim Roedelius, Bowie produziu durante esses anos um som que bebia a espuma no copo do krautrock mas assim criando uma avant-pop como nunca se tinha ouvido antes. E que viria a influenciar a produção da teia criativa a que se convencionou chamar de Die Neue Deutsche Welle, mistura fina de punk e new wave que só podia ter florescido num mitte artístico que no século passado já nos havia trazido Merzbau, Neue Sachlichkeit, Sachplakat ou o Gesamtkunstwerk como feições conceptuais das tendencias saídas de Weimar e da Bauhaus.

Talvez o NDW não tenha trazido fama e fortuna aos seus participantes, a maior parte dos nomes envolvidos são one-hit-wunderkinds e mais depressa encontro alguém que se lembra dos Modern Talking ou do 99 Luftballons da Nena do que quem me diga que o fim dos Kraftwerk não foi de todo uma discussão entre Florian Schneider-Esleben e Ralf Hütter sobre uma bomba de enchimento de pneus de bicicleta.

No entanto a mistura de sintetizadores e stadium-rock acabou por criar aquela que é uma verdadeira blueprint do que era ser bem sucedido nos anos 80. E o resto, como cantava o Espadinha, são tudo recordações…

Um dia, não me lembro se foi o Manuel Tavares ou o Francisco Freixial, deram-me a conhecer um grupo, Deutsch-Amerikanische Freundschaft que quando dois anos depois já em modo abreviado (no nome DAF e em pessoal efectivo já que estavam reduzidos ao duo nuclear de Gabi Delgado e Robert Görl) editaram o album Alles Ist Gut que não só muito me fez dançar com o clássico Der Mussolini como ao fim da noite me embalava com Der Räuber und der Prinz, wiegenlied electronica por excelência e com a qual começo a m4we desta semana.

E se começo com um duo composto em Düsseldorf, terra natal dos Kraftwerk, mudo logo para o outro lado do muro e para a voz de Uschi Brüning, uma cantora de Leipzig que deveria ser mais conhecida, felizmente o seu fundo de catalogo AMIGA dos tempos da RDA teve recentemente algumas re-edições. 

A ideia foi pegar de tudo um pouco do que destacável se poderia impor numa escolha de 40 músicas. Parece muito mas não é. Por isso decidi por uma selecção zufällig que dispusesse a forma como vejo e ouço a música teutónica. Algumas destas músicas nem são alemãs: Nat King Cole ou France Gall auf deutsch singen ou o Kosmischer Läufer, projecto que reune bandas sonoras feitas no propósito de inspirar os atletas olímpicos da Alemanha de Leste. Ou talvez não…

Reza o Klappentext publicado pela Unknown Capability Recordings, editora que entre 2013 e 2018 publicou 4 volumes de kosmische musik, supostamente feita a pedido do Nationales Olympisches Komitee. O projecto liderado no principio dos anos 70 por Martin Zeichnete, era nitidamente influenciado pelos sons dos Kraftwerk, Neu! e Cluster que se podiam ouvir nas ondas radiofónicas provenientes do outro lado do muro de Berlin. Para o governo tinha a sigla de State Plan 14.84L, os músicos chamavam-lhe de Projekt Kosmischer Läufer, música para treinar atletas e servir para coreografar rotinas de ginástica rítmica.

Na verdade em plena guerra fria muita coisa inusitada acontecia por essas bandas do mundo e os discos até são magníficos mas tudo não passa de uma enorme patranha, administrada com ardileza pelo dono da editora em causa. 

O nome do autor revela em si uma pista, Zeichnete em alemão é o indicativo do verbo zeichen, que traduzido para inglês resulta em ”drawing” ou “to draw”. Ora o pretérito disso é “drew”, o que aponta automaticamente o dedo a Drew McFayden, músico dos Magnificents, amigo de Yann Tiersen e “gerente” da Unknown Capability Recordings. Ein Scherz sim, mas bastante deliciosa. 

Colectei assim tendencias variadas desse som erudito que se foi fazendo um pouco por todo o Bundesländer Deutschland. A repetente frau Hildegard Knef relatando “ninharias” do quotidiano em Holiday Time, os Cheeky com vontade de irem descalçar no Bronx as suas Electric Boogie Boots, Kuno com Marihuana Mantra em modo elogio aos charros de erva, a dita Uschi Brüning e o colega de label fonográfico Manfred Krug em Hochzeitsnacht e Komm Und Spiel Mit Mir respectivamente a mostrarem como o jazz e a pop iam de mão dadas do outro lado do muro.

Posso ter deixado algumas coisas de fora, os Einstürzende Neubauten não tiveram espaço, nem a techno mais puxada que se ouvia ao Domingo no Berghain mas não pude evitar a inclusão de Telefon dos influentes Palais Schaumburg, banda também de Hamburgo e que mesmo tendo acabado em 1984 deixou marca na música alemã através das carreiras a solo dos seus intervenientes: Holger Hiller, um aclamado vanguardista da electronica e das técnicas de sampling; Thomas Fehlmann, pioneiro da techno e DJ residente no lendário Tresor; Frank Martin Einheit responsável pelo arranque dos Neubauten assim criando a klasse industrial na música contemporânea e ainda Moritz von Oswald possivelmente o “inventor” da minimal e dub techno.

Acabo com uma banda sonora “cosmonautica” de uma série sci-fi muito bera em honra da “guerra” que se travou durante muitos desses anos e que deixa aqui seguimento para partirmos em direcção a outras pastagens europeias…

#staysafe #musicfortheweekend 

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It was dawn of the 70s, sometime around 72 or 73, I was counting around nine or ten years old and decided to beg my mother to enroll me at the Cambridge School in Benfica for German classes. I stayed there for a short time because I quickly realized I had too much in my hands and nicht genug Zeit and so decided to drop my most recent venture. Since then I live in regret of that decision.

In those times, if there was anything that fascinated me musically, it was the harpsichord works written by Johann Sebastian Bach and that on the records that existed at home were interpreted, as I recall, by Zuzana Růžičková or Karl Richter. It was heavenly for a kid who still didn’t know either the harp or Harpo Marx.

Just before the 1974 revolution my mother moved to another house, the records were left behind (samething with my Ebal superheroes, the house was smaller) and with the  of the colonies many Portuguese “returned” to Portugal. Some of my Goan lineage who had lived in the city of Beira in Mozambique were now in Lisbon and one of my cousins helped my poor mathematics get better. He also showed me the German progrock that was not in vogue yet, except to a small Portuguese elite. It was named Kraut, it was emotional but cerebral music that dazzled for its unusual preciousness. Sowiesoso by Cluster, Flammende Herzen made by Michael Rother (who with Klaus Dinger had made Neu!), Letzte Tage – Letzte Nächte of Popol Vuh, große Wunder records that marked my adolescence immensely even without context that could support such admiration. Until, of course, I heard Radio-Aktivität by Kraftwerk, a masterpiece of electronics that in my mind served as a “bridge” from Bach.

ch, Ich glaub’ das zu träumen
Die Mauer, im Rücken war kalt
Schüsse reissen die luft
Doch wir küssen, als ob nichts geschieht
Und die Scham fiel auf ihre Seite
Oh, wir können sie schlagen, für alle Zeiten

Dann sind wir Helden, nur diesen Tag

In 1976 Bowie moved to Berlin, where until 1979 he made the most perfect art rock trifecta with Low, Heroes and Lodger. With the help of Brian Eno who was already involved with Dieter Moebius and Hans-Joachim Roedelius, Bowie produced during these years a sound that drank the foam from the krautrock glass but thus creating an avant-pop like never before heard. And that would influence the birth of a creative web that was conventionally called Die Neue Deutsche Welle, a fine mix of punk and new wave that could only have blossomed in an artistic mitte that in the past century had already brought us Merzbau, Neue Sachlichkeit, Sachplakat or the Gesamtkunstwerk as conceptual art tendencies of Weimar and the Bauhaus.

Perhaps the NDW did not bring fame and fortune to its participants, most of the names involved are one-hit-wunderkinds and more effortlessly I find someone who remembers Modern Talking or Nena’s 99 Luftballons than anyone who asures me the end of Kraftwerk was not at all an argument between Florian Schneider-Esleben and Ralf Hütter about a bicycle tire inflation pump.

However, the mix of synthesizers and stadium-rock ended up creating what is a true blueprint of what it was like to be successful in the 80s. And the rest, as Espadinha sang, are all memories…

One day, I don’t remember if it was Manuel Tavares or Francisco Freixial, I was introduced me to a group, Deutsch-Amerikanische Freundschaft, that when two years later, in an abbreviated way (in their name DAF and in permanent staff, since they were reduced to the nuclear duo of Gabi Delgado and Robert Görl) published the album Alles Ist Gut, which not only made me dance like a lunatic with the classic Der Mussolini but at the end of the night rocked me with Der Räuber und der Prinz, wiegenlied electronics par excellence and with which I start this week’s m4we.

And if I start with a duo made in Düsseldorf, the birthplace of the Kraftwerk, I soon move to the other side of the border and to the voice of Uschi Brüning, a singer from Leipzig who should be better known, fortunately her AMIGA back catalog from the times of the GDR has recently seen some re-editions.

The idea was to get a little of everything that could be imposed on a choice of 40 songs. It looks like a lot but it’s not. That’s why I decided on a zufällig selection that provided the way I see and listen to Teutonic music. Some of these songs are not even German: Nat King Cole or France Gall auf deutsch singen or Kosmischer Läufer, a project that brings together soundtracks designed to inspire East German Olympic athletes. Or maybe not…

According to Klappentext published by Unknown Capability Recordings, a publisher that between 2013 and 2018 published 4 volumes of kosmische musik, supposedly made at the request of the Nationales Olympisches Komitee. The project led, in the early 1970s by Martin Zeichnete, was clearly influenced by the sounds of the Kraftwerk, Neu! and Cluster that could be heard on the radio waves coming from the other side of the Berlin wall. For the government it had the acronym of State Plan 14.84L, the musicians called it Projekt Kosmischer Läufer, music to train athletes and that served to choreograph rhythmic gymnastics routines.

In fact, in the middle of the cold war, a lot of unusual things happened in these parts of the world and the records are magnificent, but everything is just a big hoax, managed with great skill by the owner of the publishing house in question.

The author’s name reveals a clue, Zeichnete in German is indicative of the verb zeichen, which translated into English results in ”drawing” or “to draw”. Now the past tense of this is “drew”, which automatically points the finger at Drew McFayden, musician of the Magnificents, friend of Yann Tiersen and “manager” of Unknown Capability Recordings. Ein Scherz yes, but quite a delicious one.

I thus collected varied tendencies of this erudite sound that has been made a little throughout the Bundesländer Deutschland. I had to invite again Frau Hildegard Knef, reporting “trifles” of everyday life in Holiday Time, Cheeky eager to take off their Electric Boogie Boots in the Bronx, Kuno with Marihuana Mantra, praising joints, Uschi Brüning and her colleague of phonographic label Manfred Krug in Hochzeitsnacht and Komm Und Spiel Mit Mir, respectively, showing how jazz and pop went hand in hand on the other side of the wall.

I may have left some things out, Einstürzende Neubauten had no space, nor the most intense techno that was heard on Sunday mornings at Berghain, but I couldn’t avoid the inclusion of Telefon from the influential Palais Schaumburg, a band also from Hamburg and that even though it ended in 1984 left its mark on German music through the solo careers of its key players: Holger Hiller, an acclaimed avant-gardist of electronics and sampling techniques; Thomas Fehlmann, techno pioneer and resident DJ at the legendary club Tresor; Frank Martin Einheit responsible for the start of Neubauten thus creating the industrial klasse in contemporary music and Moritz von Oswald, possibly the “inventor” of minimal and dub techno.

I end up with a “cosmonautic” soundtrack from a very trashy sci-fi tv series in honor of the “war” that took place over many of those years and which shows a continuation for us to head towards other European pastures …

#staysafe #musicfortheweekend 

DAF – Der Räuber und der Prinz

Uschi Brüning – Hochzeitsnacht

Kosmischer Läufer – Der Traum des Mädchens

Nina Hagen Band – Naturträne

Mathias Kaden – Re Menor

Trio – Da Da Da

Cheeky – Electric Boogie Boots

Nat King Cole – L-O-V-E (German Version)

Udo Lindenberg – Votan Wahnwitz

Upstairs – You’re Just Yourself

The Frank Popp Ensemble – Hip Teens (Don’t Wear Blue Jeans)

Can – I’m So Green

France Gall – Hippie Hippie

Kuno & The Marihuana Brass – Marihuana Mantra

Justus Köhncke – So Weit Wie Noch Nie

Hildegard Knef – Holiday Time

Pyrolator – Die Haut Der Frau

Flanger – Inner Spacesuit

George Kranz – Din Daa Daa (Trommeltanz)

Micatone – Yeah, Yeah, Yeah (That’s The Way It Goes)

Manfred Krug mit Günther Fischer – Komm Und Spiel Mit Mir

Matthias Vogt – Under The Radar (Pad-A-Pella)

Ruth Hohmann & Erbe Chor – Im Staub Der Sterne – Das Licht (Part1)

Helmuth Brandenburg – Ele Toldoth

Panta Rhei – Finis

Ute Lemper – Fennimores Lied

Palais Schaumburg – Telefon

Marianne Mendt – Wie a Glock’ n…

Witthüser & Westrupp – Schöpfung (1. Mose 1)

Deutsche Wertarbeit – Guten Abend, Leute

Volker Kriegel & Spectrum – Mindwill

The Front – Polaroid

Lutz Ulbrich – Reich Der Traüme feat. Nico

Reith – Wildkatze

David Bowie – V-2 Schneider

Inga – The Beat Goes On

MDK – Berlin 36

Kraftwerk – Non Stop

Missus Beastly – Geisha

Pionierchor Omnibus – Grub den Kosmonautenbrudern

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